Sob a influência de Descartes, o pensamento moderno surge profundamente marcado pela problemática da consciência (Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 1991). Desta forma, a consciência constituiu, nos finais do século XIX, o próprio objecto de estudo da Psicologia científica nascente (Davidoff, 1983; Fernald, 1997; Simões, 1992), seja o estudo dos estados (fenómenos) de consciência ou a sua substância e essência (Simões, 1992), com os psicólogos Wilhelm Wundt (1832-1920) de nacionalidade alemã, e William James (1842-1910), de nacionalidade americana, embora acessível apenas através da auto-observação, o método introspectivo (Davidoff, 1983).
Nesse tempo, a luta de muitos dentre os primeiros psicólogos para darem à nova disciplina um estatuto de Ciência levou-os a procurarem "assemelhá-la”, na metodologia e na maneira de pensar a realidade, às ciências naturais então prevalecentes. Nasceram, neste contexto, algumas linhas principais de estudo e de trabalho prático com o ser humano, nomeadamente: (1) o Comportamentalismo; (2) a Psicanálise; e (3) o Cognitivismo (Rodrigues, 1999).
Em 1913, o psicólogo norte-americano John Watson (1878-1958), influenciado pelos trabalhos do fisiólogo russo Ivan Pavlov (1849-1936) sobre respostas condicionadas (Chaplin, 1981), opõe-se à Psicologia como «ciência da consciência» e funda o Behaviorismo (às vezes designado por Condutismo, Comportamentalismo ou Comportamentismo) (E. Pestana & Páscoa, 1998), que viria a tornar-se a “Primeira Força” em Psicologia (Ferraz, 1993). Watson considerava a consciência como muito subjectiva para a investigação psicológica, uma vez que os fenómenos com ela relacionados não podiam ser observados e medidos objectivamente (Davidoff, 1983; Fernald, 1997). Por conseguinte, para o Behaviorismo, a Psicologia só podia ter como objecto de estudo o comportamento (inglês U.S.A., behavior) (E. Pestana & Páscoa, 1998). Investigadores behavioristas “respeitáveis” focalizavam a atenção quase que exclusivamente nos estímulos e respostas e ignoravam as actividades internas que intervinham entre os dois (Davidoff, 1983).
Entretanto, a Psicanálise, cujo fundador foi o austríaco Sigmund Freud (1856-1939), começa a ganhar uma reputação internacional a partir de 1909 (Fernald, 1997), tornando-se a “Segunda Força” em Psicologia (Ferraz, 1993). Esta corrente da Psicologia concentrou-se essencialmente nas experiências da infância, nas pulsões sexuais e na sexualidade como fonte da dinâmica psicológica, na tentativa de compreensão da personalidade humana, bem como na origem inconsciente das neuroses (E. Pestana & Páscoa, 1998).
No início dos anos 60, alguns psicólogos norte-americanos começaram a revoltar-se contra o velho modelo behaviorista. Insistiam no facto de que a Psicologia tinha que compreender o que se estava a passar dentro da “caixa-negra” - em particular as operações da mente. Assim, na sequência e em reacção ao Behaviorismo, surgiu o Cognitivismo ou Psicologia Cognitiva (Davidoff, 1983). Esta corrente baseia-se no princípio que os indivíduos reagem não directamente a estímulos, mas à representação (cognição) que elaboram da situação, sendo estas representações reguladas segundo os princípios da aprendizagem (E. Pestana & Páscoa, 1998). Desta forma, o Cognitivismo valoriza o papel dos processos de conhecimento (vulgarmente designados, de modo menos exacto, por processos mentais) e a influência destes na vida emocional e no comportamento humanos (Rodrigues, 1999). Nesta forma de abordagem - neobehaviorismo - destacaram-se nomes como E. Tolman, J. Dewey, J. Bruner, D. Ausubel, J. Rotter, H. Gardiner e A. Bandura (E. Pestana & Páscoa, 1998).
Contudo, a partir da década de 30, vários psicólogos norte-americanos ou aí residentes, em reacção ao determinismo e mecanicismo das concepções então dominantes: Behaviorismo e Psicanálise, começam a formular uma “Terceira Força” em Psicologia: a Psicologia Humanista (E. Pestana & Páscoa, 1998) ou “Movimento do potencial humano” (Davidoff, 1983). Alguns teóricos de renome, com especial destaque para nomes como Carl Rogers, Abraham Maslow, Roberto Assagioli, Aldous Huxley e Kurt Goldstein, consideraram que a Psicologia estava a desvalorizar o ser humano nas suas possibilidades e a estudá-lo de modo excessivamente analítico sem valorizar devidamente áreas que, embora difíceis de estudar cientificamente, tinham uma importância crucial para a consideração do humano. Desta forma, a Psicologia Humanista enfatiza o potencial humano, a autenticidade, a liberdade humana, a importância da consciência existencial, da auto-realização, da criatividade e da auto-transcendência (Rodrigues, 1999). Em suma, os seus adeptos procuraram “humanizar a Psicologia”, isto é, quiseram fazer da Psicologia o estudo daquilo que “significa estar vivo como ser humano” (Davidoff, 1983). A definição desta nova corrente foi escrita em 1957 por Abraham Maslow, tendo sido incluída na introdução do primeiro número do Journal of Humanistic Psychology, publicado em 1961 (Sutich, 1991).
Entretanto, alguns psicólogos humanistas verificaram que determinadas experiências humanas pareciam estar fora das considerações e das possibilidades explicativas dos modelos então vigentes - até mesmo do modelo humanista. Experiências de pico, de criatividade artística, de êxtase, de percepção excepcionalmente clara, de amor, espiritualidade, transcendência dos estados normais de consciência e de auto e hetero percepção…Experiências que, longe de parecerem momentos de delírio ou ilusão, tendiam a coincidir com um bem-estar excepcional e com um reforço da saúde mental de muitos dentre os que passavam por elas. Algumas destas experiências podem fornecer àquele que a vivenciou ideais, visões e aspirações marcantes, que tanto podem influenciar a sua vida pessoal quanto, até, a vida da sociedade em que está inserido (Rodrigues, 1999). Assim, também a partir da década de 60, começou a notar-se nos meios científicos, particularmente nos Estados Unidos da América, um aumento do interesse pelos chamados estados modificados de consciência (EMC) (Weil, 1976).
Este despertar do interesse pelo estudo dos estados modificados de consciência deve-se a várias condições:
1. A década de 60 caracterizou-se nos países ocidentais, particularmente nos Estados Unidos da América, como um período de contínuas e intensas manifestações de carácter revolucionário político-cultural. As contínuas manifestações de oposição ao “sistema” características da época e o frontal questionamento dos valores tradicionais da cultura ocidental, levaram significativos segmentos sociais - médicos, educadores, industriais, políticos, cientistas, religiosos -, conscientes ou não, a criarem condições para o surgimento de uma cultura alternativa, que enfatiza a renovação social através da modificação da consciência individual e colectiva - a mudança de dentro para fora (Tabone, 1995);
2. Os movimentos estudantis, que surgiram nos Estados Unidos da América, no começo dos anos 60, e que posteriormente se alargaram à Europa Central (com excepção dos países do bloco comunista), iniciaram uma procura pessoal de estados modificados de consciência, usando para isso marijuana, LSD e técnicas de meditação orientais (Simões et al., 1986);
3. Estudos etnológicos mostraram que, em 90% das sociedades citadas no Atlas Etnográfico, a provocação de EMC está institucionalizada para certos acontecimentos sociais. Assim, pode falar-se de uma “constante de base antropológica” (Simões et al., 1986);
4. Na investigação psiquiátrica, os EMC ganharam significado, em relação com hipóteses sobre a etiologia e terapia de doenças psiquiátricas (e.g., a «psicose modelo» ou a «terapia psicolítica») (Simões et al., 1986);
5. Os estados modificados de consciência atraíram a atenção de numerosos fisiologistas e psicólogos americanos, que trouxeram a sua pesquisa para o campo da Psicofisiologia. A utilização do electroencefalógrafo focou a relação entre os mecanismos cerebrais e a consciência em geral. Desta forma, na prática clínica o electroencefalograma (EEG) passou a ser frequentemente utilizado, pois traduz uma evidência neurofisiológica de perturbações na consciência (Hirai, 1989);
6. Os trabalhos do físico alemão Albert Einstein (1879-1955) e de outros físicos, colocaram em evidência a existência de dimensões fora do tempo e do espaço, de antimatéria e mesmo de antiuniversos (Weil, 1976);
7. As viagens espaciais excitaram a imaginação do público sobre estes assuntos, provocando indagações sobre a posição do Homem no cosmos (Weil, 1976);
8. A facilidade de comunicações aproximou o Oriente do Ocidente e inúmeras pesquisas psicofisiológicas colocaram em destaque as modificações somáticas, mais particularmente bioeléctricas, de praticantes de Yôga, Zen e outras técnicas de meditação orientais (Weil, 1976);
9. Chegou-se à conclusão que ao eliminar a consciência da Psicologia entramos de maneira firme e definitiva no círculo do biologicamente absurdo. Fecha-se para sempre o acesso à investigação dos problemas mais transcendentais, como a estrutura do nosso comportamento, dos seus componentes e formas. Estamos condenados para sempre a manter a falsa concepção de que o comportamento é uma soma de reflexos (Vigotski, 1996);
10. Segundo Tart (1995), a possibilidade de descobrir e desenvolver potenciais humanos latentes, que estão fora da norma cultural, por meio da entrada num estado modificado de consciência e da reestruturação temporária da consciência, constitui a base do grande interesse por estes estados.
Desta forma, começou a desenvolver-se nos Estados Unidos da América, no seio da Psicologia Humanista, uma “Quarta Força” em Psicologia: a Psicologia Transpessoal, que acabaria por ser oficializada em 1968 por Abraham Maslow, Viktor Frankl, Stanislav Grof e James Fadiman, após o Behaviorismo-Cognitivismo, a Psicanálise e a Psicologia Humanista, integrando todas estas (Simões, 1997c). “Transpessoal” (literalmente: “além do pessoal” ou “além da personalidade”) significa transcender o modo usual de perceber e interpretar o mundo a partir de uma posição de ego individual ou ego corporal (C. Grof & S. Grof, 1994). Isto é, alguns destes estados modificados de consciência levam o indivíduo a sentir que transcendeu, que foi além do que costuma conhecer como a sua pessoa, o seu eu pessoal, para se percepcionar como uma realidade muito mais ampla (Rodrigues, 1999). Em 1969, foi publicado o primeiro número do Journal of Transpersonal Psychology, editado por Anthony Sutich; e desde 1992, a Divisão 32 da APA (American Psychological Association) - Psicologia Humanista, passou a incluir uma orientação transpessoal nas suas actividades (Chinen, 1996).
Assim, a Psicologia Transpessoal pode ser considerada, de certo modo, como uma consequência lógica e natural do Movimento Humanista pois os seus fundadores são, em boa medida, os mesmos (Rodrigues, 1999). De facto, Maslow (1973), um dos fundadores da Psicologia Humanista, estava muito consciente de que esta era apenas transitória, uma preparação para uma “Quarta Psicologia” ainda mais “elevada”, uma psicologia transpessoal, transumana, centrada mais no Cosmos do que no bem-estar e necessidades humanas, que transcenda a natureza do Homem, sua identidade, auto-realização e quejandos.
A actual popularidade das religiões orientais no Ocidente em parte reflecte a sua abordagem menos teológica e mais psicológica da natureza humana, oferecendo técnicas claramente definidas, voltadas para o desenvolvimento psicológico e espiritual (Fadiman & Frager, 1986). De acordo com Wilber (1998), chamamos “desenvolvimento psicológico” a uma amálgama de diferentes linhas de desenvolvimento, incluindo a linha da identidade pessoal (geralmente chamado “desenvolvimento do ego”), a linha dos mecanismos de defesa, a linha do desenvolvimento interpessoal e a linha do afecto. Quanto ao “desenvolvimento espiritual”, diz respeito aos estágios supramentais e transpessoais de qualquer das linhas de desenvolvimento: afecto transpessoal (bem-aventurança), consciência transpessoal (supraconsciente), Eu transpessoal, interpessoal transpessoal (compaixão), cognição transpessoal (e.g., prájña, jñána do Yôga) e estados transpessoais (e.g., nirvikalpa samádhi do Yôga ou nirvana do Budismo). Em resumo, “psicológico” tende a significar “mental e pessoal”, e “espiritual” tem o sentido de “supramental e transpessoal”.
Segundo Tabone (1995), a cartografia da psique humana proposta por Ken Wilber é considerada a principal teorização no campo da Psicologia Transpessoal. Wilber (1990) tentou fazer uma síntese do que denominamos, as perspectivas “oriental” e “ocidental” da compreensão da consciência. De acordo com esta proposta, a consciência caracteriza-se por uma multiplicidade de aspectos, ou seja, é composta de numerosas faixas ou níveis “vibratórios”, em analogia com o «espectro electromagnético».
De acordo com Wilber (1990), dentro de um número infinito de níveis possíveis, que se tornaram acessíveis através das revelações da Psicanálise, do Budismo Yôgacara, do Hinduísmo Vêdánta, da Terapia da Gestalt, do Budismo Tântrico Vajrayana, da Psicossíntese e quejandos, três faixas principais (Nível do Ego; Nível Existencial; e, Nível da Mente) e quatro menores (Nível Transpessoal; Nível Biossocial; Nível Filosófico; e, Nível da Sombra), foram escolhidas com base na sua simplicidade e facilidade de identificação. O Nível do Ego é a faixa da consciência que compreende o nosso papel, a imagem que temos de nós mesmos, com os seus aspectos conscientes e inconscientes, bem como a natureza analítica e discriminativa do intelecto, da nossa “mente”. O Nível Existencial envolve o nosso organismo total, tanto o «soma» quanto a «psique» e, assim, compreende o nosso sentido básico de existência, de “ser”, a par com as nossas premissas culturais, que modelam de muitas maneiras esta sensação básica de existência. Entre outras coisas, o Nível Existencial forma o referencial sensorial da nossa auto-imagem. Forma, em suma, a fonte persistente e irredutível de uma consciência separada do Eu. Quanto ao Nível da Mente, costuma ser cognominado «consciência mística» ou «consciência cósmica» e inclui a sensação de nos identificarmos fundamentalmente com todo o universo, o Eu Absoluto. Assim sendo, o Nível do Ego inclui a mente, o Nível Existencial inclui a mente e o corpo e, o Nível da Mente inclui a mente, o corpo e o resto do universo. Em poucas palavras, o Nível do Ego é o que sentimos quando nos sentimos pai, mãe, advogado, homem de negócios, americano ou qualquer outro papel ou imagem particular. O Nível Existencial é o que sentimos “debaixo” da nossa auto-imagem, ou seja, é a sensação de existência organísmica total, a convicção íntima de que existimos como sujeito separado de todas as nossas experiências. O Nível da Mente é o que sentimos antes de sentirmos qualquer outra coisa - uma sensação de identificação com o universo.
Segundo Wilber (1990), cada escola de psicologia, de psicoterapia ou cada religião, tem como referência um determinado nível de consciência. Assim, os conflitos que surgem entre as abordagens psicoterapêuticas ocidentais e orientais são justificados, uma vez que cada uma delas está a trabalhar num nível de consciência diferente. As psicoterapias ocidentais visam “remendar” o eu individual, ao passo que as abordagens orientais propõem que ele seja transcendido. O Nível do Ego e o Nível Existencial constituem, juntos, a nossa sensação geral de sermos um indivíduo existente por si mesmo e separado dos outros. Foi a esses níveis que a maioria das abordagens psicoterapêuticas ocidentais se dirigiu. Por outro lado, as disciplinas orientais, via de regra, ocupam-se mais do Nível da Mente e, porventura, tendem a passar ao largo dos níveis da egocentricidade, pois sustentam que o ego, por si mesmo, é a própria origem de todo o sofrimento do mundo e que, dessa maneira, um ego “saudável” será na melhor das hipóteses uma contradição e na pior uma cruel brincadeira. No entanto, a imensa maioria das pessoas, sobretudo na sociedade ocidental, não está pronta a realizar, nem disposta a procurar experiências cósmicas/de fusão e tão-pouco é capaz de fazê-lo, pelo que não deve ser empurrada para uma aventura desse tipo. Qualquer coisa como um simples aconselhamento que visasse integrar projecções sobre o Nível do Ego bastaria em muitos casos. Por conseguinte, as abordagens ocidentais da Psicologia do Ego seriam perfeitamente legítimas nesses níveis.
A Psicologia Transpessoal apresenta-se, hoje, como um dos campos da Psicologia que estão em pleno desenvolvimento, apontando para uma concepção do ser humano que, por não o reduzir a um organismo biológico condicionado e determinado pela sua própria biologia e meio ambiente, o recoloca na posição de ser livre e dono de possibilidades insuspeitas (Rodrigues, 1999). A dimensão transpessoal foi de importância central na maioria das sociedades e culturas através da história. Portanto, é um reflexo da imaturidade da Psicologia, e não de sua sofisticação, o facto dela ter dedicado maior esforço à compreensão da doença humana do que à transcendência humana (Fadiman & Frager, 1986). No entanto, a Psicologia Transpessoal não contradiz, antes pretende complementar as aquisições da Psicologia em geral - que são preciosas. O que este sistema de Psicologia pretende, isso sim, é ampliar a nossa noção de ser humano para nela incluirmos faixas de experiência e vivência que podem contribuir poderosamente para dar mais sentido à nossa existência (Rodrigues, 1999).
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